Semelhança Subterrâneasobre a obra de Carina Weidle na 25ª Bienal de São Paulo, 2002

“Por que o mundo é o que é ao invés de outra coisa?” Eis a questão que para Merleau-Ponty está na ordem do dia desde o início do século passado. Mundo de coisas e imagens, imagens de coisas, imagens de imagens que se esvaem (sabemos desde a Pop). Cientes estamos de que não podemos controlá-las, nem as imagens nem as tais coisas que acabam por ser imagens de segundo, terceiro, vigésimo grau. Semelhança Subterrânea, de Carina Weidle, indeciso entre ser imagem ou coisa, reinventa uma espessura na superfície do mundo. Mostra-se como quadro e como lugar. Paisagem que se entra, um campo para uma pausa. Cenas para a visão e cenário para o corpo, a obra afirma simultaneamente distâncias e proximidades.

Em sua inicial frontalidade de imagem, a cena sugere o distante numa sucessão de planos paralelos que, incoerentemente, interiorizam situações próprias de um exterior. Vê-se no revestimento de grama artificial a construção de um campo. Paisagem que nos convida a desvendar em seu horizonte o que acontece nas cenas exibidas nos dois pequenos retângulos iluminados ao longe – não compreendemos ainda o que mostram aqueles quadros (imagem ou coisa?).

Distribuídos compassadamente sobre a grama, pequenos objetos metálicos cintilam na homogeneidade de uma atmosfera que parece não aludir a um horário preciso, não importa definir se é noite ou dia – a cor fria, artificial e acinzentada do todo sugere uma densidade velada. Os pontos de luz revelam-se pequenos sinos a evocar a memória de um som que costumava ecoar ao longe. Há um vazio grave no todo dissimulado em cenas irreais construídas com elementos prosaicos que nos reporta à visualidade de obras de Magritte.

Caixa dentro de caixa, o trabalho convida-nos, lenta e sucessivamente, para dentro. Conforme nos dispomos ou temos possibilidade de atingir os quadros distantes, adentramos a paisagem e sentimos concretamente a cena em nosso esforço real de subir e descer duas altas lombadas. O acesso ao longínquo requer o impulso, o desequilíbrio, a instabilidade de nosso deslocamento vertical.

Finalmente, próximo aos quadros, vemos cenas que se desenrolam em nichos, montadas com coisas e acesas com luz. E acabamos sorrindo diante de elementos narrativos que, no entanto, não permitem concluir história nenhuma. Na relação entre as cenas, elementos triviais brincam com direções e oposições: dentro e fora, claro e escuro, cima e baixo, inteiro e quebrado, movimento e parado.

Mantendo a promessa de um longínquo – que por essência é inacessível – o trabalho não termina. Vai realizando-se pelo encontro absurdo de coisas em escalas reais e imaginárias. Por apropriação, construção, montagem e modelagem, lentamente, a obra acontece nas superfícies que revestem coisas, também elas feitas de coisas. Com referência explícita ao vocabulário surrealista, a obra vai levando o olhar a reter-se pausadamente em superfícies estranhas umas às outras que convivem num espaço sempre móvel –grama, botões de madrepérola, conchas, confeitos de gesso e pelos de coelho.

Semelhança Subterrânea estrutura-se mediante diferentes escalas, sem pretender decidir-se por nenhuma delas. Afinal, como deliberar referências se, conforme nos movemos, mudam-se constantemente as medidas das coisas que se fixam como imagem na curvatura de nossa pequena retina? Entre paisagem e lugar, o trabalho realiza-se elidindo continuamente o foco do olhar. E se há algo do humor de quadrinho nas escolhas e relações que constroem o todo, da obra surge a intensa indagação: por que o mundo é o que é ao invés de outra coisa?

Daniela Vicentini – Março/2002